CLS Issue: September 2009
O ceratocone é uma patologia difícil de compreender. Nós já conhecemos essa doença há 150 anos. As primeiras referências apareceram na literatura médica no século 19 (Nottingham, 1854). Nós ainda não temos a cura, não entendemos sua causa e não sabemos exatamente onde ela inicia. A lente de contato causa as cicatrizes que vemos em pacientes com ceratocone? O ceratocone unilateral realmente existe? Qual o tipo de transplante, quando indicado, é a melhor opção? Estas são algumas das muitas questões que pedem respostas, e de fato são colocadas pelos pacientes.Novas descobertas na área da pesquisa do ceratocone foram anunciadas recentemente e estas podem ser significativas para a prática clínica. O propósito do artigo é discutir estas novas informações as quais acidentalmente irão responder a algumas destas questões.
Comentário do Tradutor:
Embora pouco se saiba em torno de muitas questões relacionadas ao ceratocone, algumas respostas podem ser dadas. Entre elas a de que a adaptação de uma lente RGP especial com desenho bem feito, de alta qualidade e tecnologia, com um bom acompanhamento do paciente pelo seu médico, jamais irá causar lesões e cicatrizes na córnea. Geralmente lesões corneanas em pacientes com ceratocone decorrentes do uso de lentes de contato RGPs (rígidas gás permeáveis) ocorrem por lentes de qualidade sofrível ou pelo avanço da ectasia corneana que irá gerar toque no ápice da córnea. A adaptação de lente pela técnica dos três toques (na minha opinião ultrapassada) é freqüente causa de pequenas lesões no ápice da córnea. O ceratocone unilateral existe em pelo menos 10% dos casos de ceratocone e pode estar ou não associado a um olho emétrope ou com baixa miopia e astigmatismo.
Sobre as técnicas de transplante, um cirurgião experiente e com treinamento nas diferentes técnicas disponíveis atualmente pode avaliar a possibilidade de um procedimento menos invasivo como a Ceratoplastia Lamellar Profunda ou a de uma Ceratoplastia Penetrante (convencional). É importante mencionar que nem todos os cirurgiões dominam todas as técnicas, é importante o paciente pesquisar e discutir o assunto com seu oftalmologista e nunca é demais uma segunda opinião.
Crosslinking Estromal Corneano
Poucos anos atrás a combinação da exposição da córnea a uma solução de riboflavina e radiação ultravioleta (UVA) foi lançada na Europa como tratamento do ceratocone (Dresden, Alemanha). Este procedimento, utilizando raio ultravioleta A (UVA) a um comprimento de onda de 370 nm (nanometer) está atualmente sob investigação e testes clínicos pela Federal and Drug Administration (FDA-US). Um seleto número de clínicas está organizando-se para selecionar a demanda do público potencial para os testes. É importante para os profissionais saberem onde esta promissora mas não totalmente explorada nova técnica se encontra, para que nós possamos manter nossos pacientes informados sem levantar esperanças que podem mais tarde serem frustradas.
O principal objetivo do procedimento crosslinking (riboflavina-UVA), possivelmente com um foto-sensibilizador (efeito catalizador), é obter o fortalecimento das fibras de colágeno do estroma. O crosslinking do colágeno tem a finalidade de aumentar a resistência biomecânica da córnea, contrariando a tendência a formação e progressão da ectasia corneana. Para obter estes efeito desejado da riboflavina, é essencial a remoção do epitélio da córnea. Outros métodos como o uso de anestésico tópico para inibir as junções apertadas do epitélio não permitem que quantidades adequadas de riboflavina possam fluir para a córnea (Hayes et al, 2008).
Como mencionado anteriormente, o comprimento de onda escolhido para a irradiação de ultravioleta é de 370 nm., que situa-se na banda de UVA. O raio ultravioleta A é maior o comprimento de onda existente e acredita-se que não seja tão tóxico como o ultravioleta B (UVB). Entretanto a córnea tem uma transparência de 90% para um comprimento de onda de 370 nm o que significa que raios desta intensidade irão passar diretamente através da córnea e serão absorvidos completamente pelo cristalino (Bergmanson 2009). (Ver Figura 1)
Figure 1. Ocular UVR transmittance. Published with permission from Walsh, Bergmanson, Harmey in: Bergmanson JPG. Clinical Ocular Anatomy and Physiology, 16th edition, 2009. ISBN-13: 978-0-9800708-1-1.
Aqui é onde a riboflavina 0,1% em solução dextran T500 20% entra em cena. A riboflavina irá absorver os 370 nm de comprimento de onda do UVA e quando presente na topicamente na córnea irá facilitar a absorção necessária para obter o crosslinking do colágeno necessário. Acidentalmente a riboflavina pode servir como um agente catalizador fotossensível, produzindo radicais livres de oxigênio e participando do processo do crosslinking.
A DOSAGEM DE UVA É SEGURA?Apesar das propriedades de absorção da riboflavina, a sua peresença não irá tornar a córnea opaca ao UVA @ 370nm. Como conseqüência, é possível que 50% do raio UVA atinja e seja absorvido pelo cristalino. Isso é problemático porque pode ser uma dose excessiva resultando em formação de catarata que pode levar anos para desenvolver. Dados científicos detalhados sobre a toxicidade ou não toxicidade desta irradiação é essencial.
Há algumas questões a serem resolvidas. A dose selecionada de UVA é baseada em um nível de energia de 3mW/cm2 expostos por 30 minutos, o que leva a uma dose de 5.4J/cm2 (Wollensak et al, 2003; Coskunseven et al, 2009; Vinciguerra et al, 2009). Isso é 30 vezes maior do que o sol emite a este comprimento de onda. Compare isso com a margem para trauma corneano para uma mais tóxica exposição de UVB (300 nm), que é which is 0.08J/cm2 (Pitts et al, 1987) ou uma dose 68 vezes mais fraca do que 5.4J/cm2. Um estudo histológico in vivo em coelhos expostos mostaram que a radiação UVA a este comprimento de onda e a esta dose causaram uma completa perda endotelial e de keratócitos na área exposta (Wollensak et al, 2007). A córnea do coelho pode ter menos de 400 micras de espessura estromal, mas este estudo claramente demonstra a toxicidade corneana a esta dosagem de radiação de 370 nm.
Claro que a a radiação UVB é mais tóxica que a UVA, mas infelizmente nós não temos uma quantidade de dados confiáveis sobre a toxicidade da radiação UVA. Desta maneira há ainda questões não respondidas em relação a segurança deste procedimento. Para conter a possibilidade da radiação UVA de atravessar a córnea, uma regra geral aplicada é de que a córnea precisa ter uma espessura estromal de no mínimo 400 μm (micras), o que por si mesmo contraindica o procedimento a uma proporção substancial de pacientes com ceratocone.
QUANTO EFETIVO É O PROCEDIMENTO?Os resultados clínicos dos estudos deste procedimento são de curto-prazo, embora alguns pacientes tenham já acompanhamento de mais de 4 anos (Tabelas 1 e 2).
Nós teremos que aguardar por estudos de longo prazo de bem maior duração que estes. O que nós aprendemos até aqui? Uma pequena diminuição na miopia e um modesto aplanamento da curvatura parecem ocorrer de forma consistente. Entretanto para um miope de -8.00 o qual tem uma leitura ceratométrica de 52 D (dioptrias), uma ou duas dioptrias de redução da miopia ou aplanamento corneano não terão grande impacto. Os resultados iniciais indicam que o efeito do crosslinking são estáveis. Se por um acaso a rigidez corneana aumentada for gradualmente perdida ao longo dos anos, uma re-exposição poderá ser necessária.
Como conclusão a técnica de tratamento do crosslinking por riboflavina-UVA para o ceratocone mostra-se promissora, embora gere algumas significativas preocupações. Até o momento ela parece deter a progressão do ceratocone, porém ela não oferece uma significativa melhora da condição. De toda forma esta é uma opção que os pacientes com ceratocone devem ter se a eficácia e especialmente a segurança possam ser comprovadas.
Comentário do Tradutor:
Os paciente tratados com crosslinking ainda poderão necessitar do uso de óculos (quando possível) ou de lentes de contato especiais para a melhor acuidade visual, e os mesmos cuidados devem ser tomados para a adaptação de lentes de contato RGPs que possam proporcionar a melhor acuidade visual com conforto para o paciente e assegurando-lhe a saúde fisiológica da córnea.
Caso esta terapia seja tornada um procedimento viável e popular, a questão que irá surgir é se a combinação da exposição de radiação UVA @ 370 nm utilizada em salas de bronzeamento coletivas e formulação tópica de vitamina B2 serão também definição de cirurgia (EUA). Este deverá ser um debate interessante.
Figure 2. Light micrograph showing the loss of the anterior limiting lamina (ALL) over a wide area. An arrow indicates where this layer is lost. The removal of ALL typically leads to epithelial thickness variations that are also evident in this view. Magnification approximately X200.
Comentário do Tradutor:
Embora os autores não tenham comentado sobre esta questão, o procedimento de crosslinking de colágeno de córnea com riboflavina sob radiação ultravioleta A é indicado também somente nos casos onde há constatação inequívoca de que a condição encontra-se em estágio de progressão. É igualmente importante mencionar que o ceratocone geralmente inicia o processo de estabilização em torno dos 25 anos de idade na maior parte dos pacientes, sendo que somente um percentual reduzido destes irá ter progressão indefinida e precisará recorrer ao transplante de córnea no futuro. Uma das maiores causas de indicação de transplante também é o fato de que os pacientes não tem a oportunidade de testar lentes que sejam confortáveis, que ofereçam uma boa visão e especialmente permitam preservar a saúde fisiológica da córnea. Alguns destes pacientes consultam com diferentes especialistas e mesmo assim não tem a sorte de encontrar aqueles que irão conseguir uma boa adaptação. Essa é a razão também para acreditarem que todas as lentes são difíceis de se adaptar, o que não é verdade, e que somente o transplante irá resolver o caso deles.
Outro fator importante é que o ideal para o paciente candidato a transplante é que ele possa protelar ao máximo este procedimento. Dois fatores reforçam esta recomendação: o primeiro é que o índice de rejeições parece ser inversamente proporcional a idade do paciente, quanto mais idade menores os riscos de rejeição; o segundo é que nem sempre a córnea doada terá a mesma sobrevida que a córnea do paciente. É possível que com 20 anos ou mais após o procedimento a córnea possa apresentar perda de transparência e opacidade que pode levar o mesmo a necessidade de um segundo transplante em uma idade a qual ele está em franca capacidade produtiva, no meio de uma carreira profissional por exemplo, o que pode prejudicar sua vida no âmbito social e profissional.
HISTOPATOLOGIA DO CERATOCONE
Surpreendemente a literatura é pobre de descrições sistemáticas e morfométricas a nível microscópico. A maior parte dos estudos histopatológicos são simples revisões e carecem de morfometria. A histopatologia utilizando microscópico de eletro-transmissão permitem um observador ver o tecido anormal a um nível celular ou subcelular. Quando esta metodologia é empregada em combinação com medidas cuidadosas em amostras múltiplas, nós podemos aprender importantes lições sobre uma doença. Temos perseguido o desconhecido e inexplorado e feito proveitoso progresso sobre o qual podemos revelar aqui. Este novo entendimento pode ser aplicado diretamente a prática clínica.
Nosso trabalho tem mostrado claramente que ao menos inicialmente o ceratocone é uma doença com foco na cornea anterior. Todavia toda a córnea torna-se envolvida. Embora a literatura descreva quebras, rupturas e danos na lâmina anterior (ALL) (Leibowitz and Waring, 1998; Rabinowitz, 2005), nosso estudo tem revelado um bem maior envolvimento da lamina limite anterior (ALL = Anterior Limit Lamina) na fisiopatologia do ceratocone. Centralmente no cone, mais de 50% de toda a ALL é afetada, e nas áreas sobrepostas ela é completamente perdida. (Figure 2) (Horne et al, 2007).
A lamina limite anterior é a fundação na qual o epitélio é fixado. Isso explica o porquê dos pacientes com ceratocone terão de forma mais freqüente defeitos epiteliais que irão corar com a fluoresceína. Em adição a este dilema está o envolvimento epitelial nesta patologia corneana. De fato, foi proposto há 50 anos atrás que o ceratocone iniciava no epitélio (Teng, 1963). Nós não estamos prontos para dizer isso mas certamente é parte da patologia. A presença de células degenerativas, não saudáveis, no epitélio podem somente adicionar para a fragilidade da superfície ocular dos pacientes com ceratocone. Por esta razão que nós recomendamos o livramento apical sempre que possível quando adaptamos lentes rígidas gás permeáveis em córneas com ceratocone. A lente escleral que tipicamente encobre a córnea totalmente em especial a área cônica é também uma boa maneira de adaptar estes pacientes. Desta modo nós reduzimos o estresse mecânico em uma área patológica já enfraquecida.
Comentário do Tradutor:
Essa questão da preservação do ápice corneano comentado pelos autores é um assunto debatido há muitos anos (algumas décadas) tanto nos EUA como no Brasil. O oftalmologista gaucho Dr. Saul Bastos, inúmeras vezes comentou em suas palestras sobre a necessidade de preservar a córnea evitando a tão chamada adaptação de lente em três toques no ceratocone. Essa sem dúvida é a razão pela qual temos vários pacientes adaptados com lentes em ceratocone com acompanhamento de mais de 30 anos sem nenhuma lesão epitelial decorrente do uso de lentes de boa qualidade e bem adaptadas sem tocar a córnea em seu ápice.
A retirada de toda a lamina limite anterior é realizada com a ajuda de células recrutadas de áreas além da córnea (Figura 3) (Mathew et al, 2009). O que estas células são, de onde elas vêm e o que exatamente elas estão fazendo é o foco de estudos futuros em nosso laboratório.
Figure 3. Transmission electron micrograph of a non-corneal cell (triangle) in the anterior stroma. This undocumented corneal visitor has an intimate relationship with a keratocyte (arrow).
Quando a remoção é completa e toda a lâmina limite anterior some, uma cicatriz é frequentemente toma lugar para servir como uma interface entre o estroma e o epitélio. Esta é a nossa explicação para a cicatriz subepitelial anterior tão tipicamente observada no ceratocone. É a nossa opinião que esta cicatriz corneana não tem nenhuma relação com o uso de lentes de contato mas resulta da progressão de uma doença. Novamente é aconselhável manter esta livre esta parte da córnea na adaptação de lentes de contato. Depois de tudo, nós não queremos colocar maior estresse nesta região já severamente atingida.
Por causa que a maior parte dos eventos no ceratocone ocorrem anteriormente na córnea (Horne et al, 2007), pode ser vantajoso para o paciente que requer transplante de córnea considerar a possibilidade de uma ceratoplastia lamelar. Atualmente, a ceratoplastia penetrante parece ser o procedimento cirúrgico padrão para o ceratocone. Um estudo recente do Texas Eye Research and Technology Center demonstrou que não há vantagem visual da ceratoplastia penetrante sobre a ceratoplastia lamelar (Nielson et al, 2009). Entretanto a cirurgia da ceratoplastia lamelar oferece importantes vantagens naqueles casos nos quais a rejeição é um evento altamente não desejável, a estrutura do globo é mantida e o tempo de cicatrização é reduzido em relação a ceratoplastia penetrante.
Olhando para o Futuro
Atualmente estamos pesquisando a organização lamelar e estamos próximos de explicar como a ectasia ocorre. Nós sabemos que o processo da doença causa uma perda de lâmina limite anterior e uma entrelasse na lamela estromal anterior, todos podem contribuir para o afinamento da córnea. Contudo, mesmo com estas perdas, nós verificamos um surpreendente aumento do número geral de lamelas encontrados nas córneas com ceratocone (Mathew et al, 2009). A razão para este aumento é que as lamelas dividiram-se em unidades menores. Esta descoberta desta sobre a lamela estromal pode ser um fator importante faltando na explicação da ectasia no ceratocone e na ceratoectasia induzida pós-cirurgia refrativa, a qual não pode ser explicada pelo simples afinamento sozinho da córnea. Esta fragmentação lamelar possivelmente leva a um enfraquecimento geral da estrutura biomecânica da córnea, provocando a ectasia.
CLS
By Jan P.G. Bergmanson, OD, PhD, PhD h.c, DSc, & Jessica H. Mathew, OD